terça-feira, 29 de abril de 2014

Arequipa, a cidade amena


Foi um daqueles casos muito agradáveis em que a realidade excedeu largamente as expectativas. 

Depois das condições agrestes do Lago Titicaca (temperaturas baixas, vento e ar rarefeito devido aos 3800-3900 metros de altitude, gerando algum desconforto físico) e de uma viagem de 7 horas em autocarro (confortável), chegámos já de noite a Arequipa. Além dos benefícios da redução da altitude para menos de 2500 metros, a minha expectativa era moderada, apenas baseada nas informações do guia de viagem. Para apimentar as coisas, o condutor do autocarro perdeu-se nos arrabaldes da cidade (um caos urbano,  comum nas cidades peruanas mas todavia espantoso mesmo para um urbanista habituado a correr mundo). Durante meia-hora, o autocarro pullman de 2 andares circulou fora das vias, avançou longamente em contra-mão, fez marcha-atrás umas 4 ou 5 vezes, ficou parado, aparentemente indeciso, durante largos minutos, fez sair um dos condutores para parar o tráfego contrário. Ao princípio fez pensar que se poderia tratar de um bus-jacking.

Primeiras surpresas: um taxista simpático e um acolhimento afável e muito civilizado na recepção do hotel, localizado num edifício simpático a menos de 5 minutos a pé da Plaza de Armas. Quarto confortável e acolhedor.
As grandes surpresas chegaram no dia seguinte. Depois de um pequeno-almoço "caseiro" e apetitoso saímos para a rua, em pleno centro de Arequipa, e fomo-nos deparando com uma sucessão de "casonas" coloniais, dos séculos XVI a XVIII, absolutamente deliciosas. Um clima ameno e uma atmosfera de rua igualmente amena. 

Nova surpresa na chegada à Plaza de Armas. Ocupando uma das faces do quadrilátero absolutamente regular estava a catedral, edifício clássico implantado de forma a oferecer a fachada lateral à praça. Dois arcos monumentais rematando na perpendicular cada extremidade do pano de fachada, uma porta monumental e uma escadaria delimitada por um gradeamento de ferro forjado da época criavam o cenário. Nos outros 3 lados do quadrilátero, cortinas de arcarias em dois pisos, criando loggia, apostas contra a irregularidade das fachadas pré-existentes, harmonizando-as na melhor tradição inaugurada na Place Royale (Paris) uns séculos antes e aplicada nas "plaza mayor" de várias cidades de Espanha, completavam o enquadramento. No centro um jardim romântico, com a sua fonte e os seus canteiros, áleas e bancos, a borbulhar de pessoas de todas as idades e ocupações, crianças a brincar, idosos a contemplar, adultos a conversar ou a petiscar, fotógrafos da velha guarda, com as suas câmaras dependuradas ao peito, a trabalhar, turistas como nós a deambular. Num canto, a praça entreabre-se para revelar lá mais atrás a igreja e convento dos jesuítas, este numa sucessão de claustros elaborados e sossegados.
Ao segundo dia outro "prato de substância", o Convento de Sta. Catalina. Fundado em 1580, é uma cidade dentro da cidade (relação traduzida na denominação local de "cidadela"). Igreja e extensos e espectaculares espaços comunitários (agora transformados em galeria de arte da Escola de Cusco e das jóias do convento) e generosas infra-estruturas comuns (cozinhas, armazéns, lavandarias, cemitério, horto e jardim, vários claustros introspectivos e decorados com cenas religiosas pintadas nas paredes perimetrais). 
 
Mas verdadeiramente inesperada e espantosa é a parte habitacional, constituída por sucessivos núcleos de celas personalizadas (aposentos de senhoras nobres da cidade e da região, com o respectivo nome esculpido sobre a verga dos portais, vários dos quais ornados de pilastras e frontão). Celas normalmente constituídas por uma sala abobada de 4 ou mais metros de pé direito - mobilada parcamente mas utilizando fauteuils, chaises-langues, mesas, arcas, armários de portas lavradas e outros móveis patrícios de época, cama encaixada sob um arco cavado na espessura da parede - e por uma cozinha ampla num pátio interior no qual uma escada dava acesso ao terraço de cobertura (ou a um piso superior, se fosse o caso). Ocasionalmente um pequeno compartimento de apoio (algumas professas, viúvas, mantinham uma filha junto de si até à idade de casar).



















Cada núcleo organizado em torno de pátios comuns e o conjunto estruturado por uma rede de ruas estreitas com nomes de cidades espanholas. O todo encerrado da restante cidade por um muro perimetral de 4 ou 5 metros de altura, em "sillar" (*), ocupando uma mega "quadra" de 20.000 m2. Absolutamente fascinante.























Quatro horas de deambulação e descoberta permanente e uma memória muito agradável quando somos restituídos ao mundo secular da cidade.

E há a Casa de Moral (assim denominada por causa da árvore bi-centenária que se ergue no centro do pátio principal), "casona" patrícia construída em estilo barroco-mestiço em 1730, na habitual sequência de pátios, comum nas casas coloniais de Arequipa. Propriedade original de uma das famílias mais influentes da cidade, a sucessão de espaços que se organiza em torno do pátio principal, com as suas generosas dimensões em planta, pés direitos elevados e janelas rasgadas na vertical jorrando luz para o interior. Tudo bem restaurado, mobilado e decorado com exemplares de época (vários pertencentes à família original), é uma fascinante lição da arte de bem habitar. Mais uma cereja em cima de um bolo já muito apetitoso.















































E a travessa por detrás da catedral, para beber um copo ou almoçar numa esplanada ou jantar num terraço sobranceiro. 

Arequipa, uma cidade que ilustra bem o que ser "cidade" significa, uma cidade amena e convivial onde será sempre bom voltar.


(*) O "sillar" é a designação local de uma pedra vulcânica branca e porosa, correntemente utilizada na construção dos edifícios de Arequipa até ao século XIX. A nobreza do material aliada à textura da pedra banhada pelo sol dá um belo efeito.

Escrito por Vitor





Viver sobre juncos. As ilhas dos Uros, no lago Titicaca



Esta é a história contada de Cristina e Vítor Suaña, aymaras, construtores de ilhas e empresários da ilha Khantati (amanhecer em língua aymara), no conjunto das ilhas dos Uros, no lago Titicaca. O lago, a 3810 m de altitude, estende-se entre o Perú e a Bolívia, com águas misteriosas e que, nesta manhã calma, espelhavam o céu.














Há uns 10 anos, Cristina e Vitor acharam que havia demasiada gente e conflitos na ilha onde viviam, muitos dos quais devidos a diferentes atitudes face ao turismo emergente, e tomaram a decisão de construir a sua própria ilha. As ilhas são plataformas flutuantes, espessas, de camadas de totora, uma espécie de juncos. Para que as ilhas não derivem ao sabor dos ventos, amarram-se a postes de eucalipto espetados no fundo. As ilhas agrupam-se, numa espécie de malha urbana, com pequenos canais entre elas e estruturadas pelo rio central por onde se faz a grande circulação entre a cidade de Puno e o lago e as suas ilhas.

















As plataformas exigem manutenção continuada, pois a degradação do material submerso requer uma constante reposição na parte superior. Os colmos frescos são verdes, com uma secção mais ou menos arredondada, que se vai achatando à medida que secam e ficam castanhos, cor de café com leite. Quando se atraca e se dão os primeiros passos na ilha, estranha-se o fofo e caminha-se com cuidado, como se fosse preciso manter o equilíbrio.
















Tudo na ilha é feito de totora, as casas têm como base de suporte uma camada de totora, paredes entrançadas e telhados com esteiras, os bancos são molhos cilíndricos bem amarrados. Vivem na ilha quatro famílias, ligadas entre si, e que cooperam na gestão da empresa. 
















O Vítor levou-nos no seu barco e mostrou como se corta a totora, com uma pequena lamina amarrada na ponta de uma vara comprida. São cortadas acima da raiz flutuante, com comprimentos de perto de 2 m. Também exemplificou a pesca dos pequenos peixes originais do lago, com redes fixas esticadas, e queixou-se que as trutas que foram introduzidas se desenvolveram bem de mais e comem os outros peixes.  
















Contou como iniciaram a construção da primeira cabana para alojar turistas, ridicularizados pelos amigos - que turistas quererão dormir numa ilha? -, como de facto quase desistiram quando não vinha ninguém e, reconheceu-o, só a persistência da Cristina os manteve. Depois, veio um turista, depois outro, começou a funcionar o boca a boca e construíram mais cabanas. Instalaram casas de banho ecológicas, painéis fotovoltaicos, por enquanto sempre a investir. As reservas e toda a correspondência electrónica são tratadas por telemóvel. Mas agora ficaram famosos, a Cristina aparece no Lonely Planet!


domingo, 27 de abril de 2014

Eu não acredito em espíritos, mas ...


Circunstância: cerca das 19:00 horas do dia 14 de Abril, plena Semana Santa, Plaza de Armas de Arequipa, Perú, passeio fronteiro å catedral. Pela rua que circunda a praça avança em passo cadenciado uma procissão com os seus andores, os círios, os encapuçados na boa tradição hispânica e os fiéis segurando velas acesas que tremeluzem na noite. Eu assisto de pé na beira do passeio central, no meio da pequena multidão que acompanha o cortejo. 

De repente, um homem humilde, de  meia idade e olhar limpo, pára ao meu lado e diz-me a meia voz: "Arquiteto, se recuerda de mi ? Estuviemos juntos en la obra depués del temblor de 2001, en que reconstruímos la torre de la catedral". E apontou para a torre do lado direito, cenicamente iluminada na noite escura. Lá lhe expliquei que não sou peruano, que devia ser um equívoco. Ele olhou com ar interrogativo mas o meu sotaque deve-o ter convencido. Passado um curto instante avançou e desapareceu na multidão. O que eu não lhe disse é que sou arquitecto.

Escrito por Vitor