quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Paisagem urbana heteróclita: Trivandrum

Heteróclito (adj.): que se desvia dos princípios da analogia gramatical ou das normas de arte; diz-se do que é excêntrico, singular, fora do comum: do grego ετερόκλιτος (heteróklitos) , pelo latim heteroclitus.

Tenho um amigo – aliás bom escrevente, conhecedor de significados e defensor da grafia do seu tempo de escola - que acha esta palavra difícil e o seu uso até pedante. Por isso aqui fica o esclarecimento, pois quase tudo é heteróclito nas cidades do oriente.
Trivandrum, no estado indiano de Kerala é um exemplo. A cidade é atravessada por uma avenida larga de múltiplas faixas mas para os lados multiplicam-se ruas de todos os tamanhos, desde vielas em que só cabe uma pessoa a caminhos largos com árvores.
O trânsito é verdadeiramente heteróclito, numa amálgama sem regras de peões, bicicletas, motos, tuk-tuks, carros e camionetas, que se misturam e movem aparentemente sem drama, tendo um concerto de buzinadelas preventivas como banda sonora. Não esquecendo os cães, cabras e vacas. Atravessar ruas e cruzamentos é um desafio de oportunidade!


Os edifícios sobressaem, de todos os tamanhos, de todos os feitios, e em múltiplos estados de conservação desde os inacabados às ruínas, dos espelhados aos que vêm de outros tempos. Letreiros por todo o lado, em misturas de cores – embora predominem os vermelhos e os amarelos – e de conteúdos. Anunciam-se computadores, jeans, cursos superiores, roupas e telemóveis. As lojas abrem-se para a rua, e nos passeios ou nas bermas passa-se da venda de frutas aos saris e aos electrodomésticos. Cozinha-se,come-se ou está-se apenas. Nos vazios acumula-se o lixo, onde os plásticos dominam.



E às vezes uma jóia: um palácio do tempo dos marajás, edifícios vitorianos da administração britânica, a biblioteca universitária rodeada de verde, em pequenos oásis de harmonia. Por vezes um templo. E nesse sítio parece fazer-se silêncio e o mundo para num recolhimento sentido de contacto com outra dimensão.

Travel light

Viajar leve, será este o meu próximo conceito.
Precisa-se de muito pouco, na realidade. E no balanço de vantagens e desvantagens, os inconvenientes das bagagens “de porão” na limitação ao movimento e à espontaneidade de decisões menos convencionais em muito ultrapassam o eventual conforto de ter “as nossas coisinhas todas” e, se calhar, que regressam intocadas.
Vou fazer a tentativa de viajar com pouco. Entra-se e sai-se dos aviões, pode-se apanhar comboio e autocarro, saltar num sítio e caminhar à procura de poiso, alterar planos ou ir sem planos. Será preciso alguma logística e escolher bem o que couber num volume cabin-size. Agora com um requisito adicional: secar rápido! Será mais fácil para destinos quentes, pois camisolas, anoraks e botas são volumosos. Mas se se conseguir passar a barreira da “só-uma-bagagem-de-mão” no avião, depois ficam vestidas… E dizem os viajantes a tempo inteiro que a opção de compra em cada destino é muito sensata.
O que despoletou a reflexão? Uma viagem atribulada, aviões perdidos, malas desaparecidas e sobrevivência durante quatro dias sem nada, incluindo uma apresentação em congresso com um pólo comprado apressadamente! Em Trivandrum, Kerala, no sul da Índia.


sábado, 16 de abril de 2011

O passeio da tarde em Blatna

A menina vai pela mão. Passa pela ponte sobre o fosso, olha brevemente para a torre branca quadrada que se levanta bem alta, com um reticulado de traves negras na parte superior, passa as portas sob o pequeno túnel e entra no pátio do castelo, que atravessa em pequenos passos sem olhar as construções brancas e amarelas, bem renovadas, nem a alta ala final, escalavrada.
Ela já só vê o campo atrás, com pequenos bosquetes de carvalhos e outras árvores despidas, o chão atapetado de folhas secas e de uma erva verde acastanhada. Ela tem um encontro. Sai pelo portão, atravessa uma pequena ponte sobre o fosso, e não precisa de andar muito mais.
Um grupo de gamos aproxima-se. Várias fêmeas mostram o grafismo sugestivo do rabo, enquadradas por dois machos, maiores, de hastes floreadas, a controlar.
A menina dá-lhes comida. Ali ficam, a mãe e a menina, rodeadas pelos bichos neste encontro repetido.
Depois regressam, pelo mesmo caminho. À saída, no fosso, ainda atira as últimas migalhas a uns patos que também se aproximam.
Depois sobem, passam a estátua da Madona, viram para a porta sob a torre no topo da praça, atravessam o terreno atrás da igreja e desaparecem por um dos lados.





21 de Março de 2011

Fim de tarde medieval em Zvirkov

A albufeira de Orlik serpenteia entre as encostas arborizadas da Boémia ocidental. Neste fim de inverno ainda se vêem placas de gelo que quebram os reflexos das árvores na superfície plácida. Os pinheiros e os espruces fazem uma mancha escura nas faldas a toda a volta, mas nas partes mais baixas, junto à água, são sobretudo os castanhos dos troncos despidos das folhosas que sobressaem. Em alguns sítios, uma percepção de manchas avermelhadas indica já a emergência de novos gomos.



É aqui que se ergue, numa península estreita, um burgo medieval murado, com torre, igreja, casa senhorial e várias construções em pátios sucessivos. Mais uma vez parecia estar-se numa das histórias de princesas encerradas em torres e de cavaleiros valorosos. Estava uma luz suave de fim de tarde, não havia ninguém. No segundo pátio, um som de pancadas em madeira sobressaltou-me: quem estará preso a pedir libertação? Tratava-se de um operário a martelar o telhado na preparação da época de invasão das hordas de turistas.



21 de Março de 2011

Águas românticas em Marienbad

Marianska Lanske é para nós a Marienbad do filme de Resnais, de quem já ninguém se lembra bem, e de impressões deixadas por leituras de uma época de damas e cavalheiros, aristocratas e intelectuais, e de uma Europa central poderosa.
Marienbad parece um pouco irreal, com ar de conto de fadas, nas suas casas românticas de cores pastel, ladeando parques de grandes árvores, agora despidas mas que se imaginam verdejantes. As colunatas, construídas em torno de uma nascente ou das suas fontes, ponto de encontro central da vida social, simbolizam a cidade e o seu propósito.
Tudo começou com as instalações termais, que abriram ao público em 1898, aproveitando várias nascentes de água com diferentes composição e, portanto, benéficas para maleitas várias de digestão, rins, circulação e diabetes, não esquecendo o stress. Por aqui passaram músicos, escritores, políticos, reis, czares e imperadores. Churchill ainda tem um bar com o seu nome.
Hoje, nesta época ainda antes de época, os visitantes eram principalmente seniores, com predominância feminina, que se viam a beber a água em pequenos goles. E parece tradição fazê-lo por uns jarros achatados com asa que é também o canudo de bebida, de gosto romântico muito popular.
Também bebi a água das várias fontes: uma mais ou menos insípida, outra com muito magnésio e salobra até ao enjoo, outra gasosa e com muito calcário. Esta até a repeti, depois de ter lido que é adequada contra a osteoporose!






20 de Março de 2011

sábado, 2 de abril de 2011

Sem rosto

Quase tropecei nele, a andar de olhar levantado para as decorações das fachadas. A mancha escura no calçado de pedras cinzentas era afinal um homem de joelhos, prostrado para a frente, os antebraços apoiados e dirigidos para um barrete virado à espera de moedas. A cara estava escondida e todo o corpo imóvel.
Depois encontrei outros, sempre esta posição rasteira e sem rosto. Um cão, também imóvel, acompanhava uma destas figuras prostradas.
De algum modo assemelham-se às estátuas sombrias de santos a recordar os tempos medievais de Praga. Ou à escultura inquietante Il Commendatore, em homenagem a Mozart, à entrada do teatro onde se estreou, a 29 de Outubro de 1787, o Don Giovanni.









20 de Março de 2011

Expresso, cappuccino, chocolate (em Praga)

As cidades são também os seus cafés. A memória de um expresso, capuccino ou chocolate pode perdurar tanto ou mais do que a de uma catedral ou museu, talvez porque à imagem se associam pedaços de vida.
De Praga, ficam três cafés.

O café da Casa Municipal, uma enorme sala rectangular, com grandes janelas para a rua, que logo desde a rua permitem adivinhar o ambiente. Os lustres pendem, luminosos, reflectindo o brilho nos espelhos. Está-se no reino da Arte Nova, nas linhas e nas decorações, nos painéis, criando um ambiente de cores pastel, sorrisos nos olhos e alegria despreocupada, a lembrar as jovens nínficas de Mucha. Nesta hora ao fim da noite, são poucas já as pessoas, alguns casais, duas amigas, uma ou outro solitário.


O Café Oriental é cubista, no 1º andar da casa cubista da Madona Negra, bem perto. Por cima está o museu cubista, com planos de arquitectura, mobiliário, pinturas e escultura. Em baixo, a loja com uma delícia de objectos a recriar a época. No café, ao fim da tarde, tomou-se o melhor chocolate de Praga. Aqui são os triângulos que imperam, as linhas direitas mas quebradas em ângulos agudos, a desconstrução do plano único por várias faces. O estilo está nas mesas e nos candeeiros, no bengaleiro e nas chávenas. Associo-o a ruptura, de vanguarda dos anos 20 em que a transgressão se fazia em grupos de artistas e pensadores.


O Café Slavia fica em frente do Teatro Nacional, numa esquina com grandes janelas com vista para o Vltava. Um café urbano, de quem vai ao teatro, ou de conversas entre amigos, ou poiso habitual para ler o jornal da manhã, que integra os diferentes ambientes ao longo do dia. O estilo é aqui um neo-clássico a lembrar senhores burgueses e conversas de intelectuais estabelecidos. Tem um piano que acompanha o fim do dia. Aqui também se come, e bem. A clientela é mais heterogénea, desde os senhores e senhoras de Praga a estrangeiros de todas as idades. Como o jovem chinês que, depois da concordância do pianista, ali esteve a tocar, com ar deliciado e grande maestria.

24 de Março de 2011

terça-feira, 22 de março de 2011

Revisiting Travels / Viagens de revisita - Praga 2009-2011

Há lugares onde apetece voltar. Às vezes é para conhecer melhor, quando faltou tempo de passear e conhecer, ou para continuar uma relação com espaços, ambientes ou gentes que se acha ainda incompleta. Mas há também, em alguns casos, apenas o desejo de voltar, de tornar a ver e a estar. A percepção deste desejo nem sempre é clara, muitas vezes mantendo-se latente até uma oportunidade o fazer emergir.
Foi este o caso de Praga. Pela primeira vez em 2009, Praga foi um amor imediato, de fascínio pelas casas, ruas e praças. Árvores floridas na primavera, imagens de fachadas de cores suaves, frontões recortados e muitas decorações, um cardápio de estilos arquitectónicos. Ao sentimento de bem-estar em cafés, restaurantes, bancos de rua, juntou-se uma magia difusa de um passado de conhecimentos e artes diferentes e intensos. As torres das igrejas marcam o horizonte, as estátuas erguem-se por todo o lado e alguns dos santos têm nomes estranhos, os concertos parecem fazer parte da cidade.
Karlúv most, a ponte Calos,é um marco, a unir a cidade baixa com a colina. Se nos dias radiosos, ela é um mar de gente e uma tracção turística obrigatória, de realejos, bugigangas e retratos, à noite ou à chuva, ela fica misteriosa, deixando entrever o rio e a cidade estendida na bruma. Como agora, nesta viagem de revisita, dois anos depois da primeira.
Lá em cima o castelo. Uma mole maciça de janelas repetidas, em jeito de muralha que barra a vista. Lá dentro, imaginam-se os corredores, os físicos e os dos processos administrativos, as voltas inexplicadas e os becos, a impotência e a compreensão. Kafka deve ter visto as mesmas imagens milhões de vezes, sempre que levantava os olhos para o outro lado. Foi este o sentimento que me ficou do seu Castelo, lido há muitos anos, e que agora revisitei. E que a estátua em sua homenagem também transmite, apesar de não a compreender bem!
No meu imaginário vai também ficar associado o vento cortante dos pátios do complexo.
Praga, 18 de Março de 2011
Helena