sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Conto moral em 3 actos

A última vez que me esqueci de arrumar a minha Leatherman (uma espécie da canivete suíço, mas mais desenvolvido) na bagagem de porão foi antes do embarque num voo Boston-São Francisco e o resultado foi a Leatherman ser-me confiscada no controlo de segurança e ter de comprar uma nova. Além do valor pecuniário (mais de 150 €), há o valor afectivo. Trata-se de um objecto que dá prazer ter e utilizar nestas andanças.
1º Acto – Prólogo
Aeroporto de El Calafate. Feito o check-in no voo para Buenos Aires, já na fila do controlo de segurança, dou-me conta de que tenho a Leatherman no estojo posto ao cinto. Volto em passo acelerado ao balcão de check-in, na tentativa de encontrar uma solução que permita ainda despachá-la como bagagem de porão. Ao chegar, vejo a minha mochila (que é totalmente preta) a ser colocada na passadeira de bagagem e a mochila da Lena (igual mas com algumas partes cor de caqui) encostada, para ser colocada a seguir. Peço que me dêem a mochila da Lena, enfio rapidamente a Leatherman numa das bolsas laterais e reentrego a mochila, que é colocada na passadeira. Aliviado e satisfeito, regresso à fila do controlo de segurança, não deixando de me interrogar porque razão, mais de 15 minutos depois de termos feito o check-in, a nossa bagagem ainda ali estava.
2º Acto – Coincidências
Passadeira de recolha de bagagens no aeroporto de Buenos Aires. Surge a minha mochila (preta). Retiro-a da passadeira e só depois começo a estranhar pequenos pormenores. O cadeado que liga os fechos inferiores não está lá. A Lena chama-me a atenção para que há um saco-cama enrolado sob a tampa superior da mochila. Compreendo que não é a minha mochila (trata-se de uma da mesma marca, modelo e cor) e recoloco-a na passadeira. Passados uns instantes, surge na passadeira a mochila da Lena e logo a seguir a minha (verdadeira) mochila. Quando retiramos a mochila da Lena aproxima-se um casal jovem, franceses, e concluímos os quatro de que a mochila da Lena afinal é a da francesa. E que a anterior mochila preta igual à minha é do francês. Em síntese, o casal francês tinha mochilas iguais às nossas, mesma marca, modelo e repartição de cores pelos membros do casal. Brincamos os quatro sobre a coincidência e eles vão-se embora.
3º Acto – Epílogo
Finalmente surge na passadeira a (verdadeira) mochila da Lena. Antes de a colocar no carrinho de bagagem procuro a Leatherman. E não a encontro na bolsa lateral onde a tinha posto. Numa primeira fracção de segundo admito o roubo. No instante seguinte, qual raio que me atravessa o espírito, percebo o que se passou. Eu e a Margarida saímos disparados e atravessamos a correr a sala de bagagens, o controlo de saída, o átrio das chegadas, à procura do casal francês, que encontramos já na fila de espera dos táxis. Segue-se a parte caricata. Rápida explicação minha, que os franceses dificilmente terão percebido logo, e passa-se à busca da Leatherman nas bolsas laterais da mochila dela. Na primeira bolsa não há nada. Da outra começam por sair cuecas e sutiãs, com a francesa a balbuciar “mes culottes”. Aí parei e deixei a busca para a dona da mochila. Instantes depois surge a Leatherman. Cai o pano, rápido.
Neste tempo de segurança reforçada nos aeroportos, ficam várias ilações e outras tantas interrogações. Nomeadamente sobre o papel do acaso nas falhas de segurança.
Hotel Colón, Buenos Aires, 2010-01-28
VC
PS – Cristina, pensámos em ti e fizemos uma fotografia.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Puerto Natales

Definitivamente, gosto destas cidades de fronteira onde o espírito pioneiro se pressente no ar e se lê nas pessoas, nos espaços e nas construções.
A simplicidade da quadrícula a organizar tudo, os cheios e os vazios, as casas, a igreja, as ruas, a praça com o jardim público e os bustos dos notáveis, a escola, a sede da edilidade. Casas de madeira de um ou dois pisos bordejando as ruas, multiplicidade de formas e usos dentro de uma tipologia definível, frequentemente forradas a chapa ondulada ou tábua trincada (como o casco das baleeiras) e pintadas de cores fortes e contrastadas, utilizando criativamente as tintas que sobram do arranjo dos barcos ou de outras aplicações produtivas. Tabuletas elucidativas que atraem o olhar e orientam a procura. Uma atmosfera de comunidade, de simplicidade e de clareza sobre as condições básicas da existência. O mar está presente, a lembrar que o resto do mundo existe. O porto (mais do que o aeroporto) é o interface dessa articulação. Os navios atracados o elo de ligação intermitente.
Puerto Natales é uma dessas cidades de fronteira. Situa-se à entrada de um dos braços do Estreito de Magalhães, expressivamente denominado Última Esperança.
No autocarro da carreira que liga Puerto Natales (Chile) a El Calafate (Argentina), 2010-01-26
VC

Patagónia Radical

As previsões de tempo eram de alguma acalmia. O vento seria, apenas, de 80km/hora, o que permite a navegação no Lago Grey, a caminho do Glaciar onde se pode caminhar.
Aí fomos - pum catapum, splash… - numa lancha semi-rígida, apanhando valente tareia para depois de navegar num mar de icebergs, alguns do tamanho de uma casa, chegar ao nosso “porto seguro”. Um calhau arredondado, liso, que se trepava até um monte de pedregulhos e cascalho, junto ao início do campo de gelo. Aí, bem encasacados, devidamente enluvados e embarretados, completámos o equipamento com grampos nas botas, arnês e bordão adequado. Antes, porém, fomos encorajados a usar o “sani-gelo”, pois, daí em diante as comodidades eram, ainda, menos discretas.
Mesmo junto ao gelo, as instruções. Para andar em plano, fazer passo de pato, pés à largura dos ombros. Para subir, a técnica do 1-2-3, ou seja, primeiro um pé espetado a pontapé, depois o bordão e depois o outro pé, recomeçando a contagem. A descida é na posição de “toilette”, pernas flectidas e “espalda bien derecha”, com a dificuldade acrescida de que não está lá o normal apoio.
Mas lá fomos. E continuaram as emoções! Para atingir a enorme planalto do glaciar há que vencer a primeira barreira, quase vertical. Mas depois é a maravilha. Os azuis dos riachos em meandros, brilhantes, nos intervalos em que o sol apareceu. Lagoas no meio do gelo, profundas, deixando ver os estratos mais ou menos escuros, mas sempre de azul intenso. Torrentes com quedas de água dentro do glaciar, que julgava uma massa compacta de gelo e é afinal, um intrincado de túneis e linhas de água.
Horas de maravilha onde nem faltou um chá verde com mel, bem quentinho, partilhado no meio da brancura azulada do glaciar. O regresso foi em águas então tranquilas, o que rematou da melhor maneira a estadia no PN das Torres del Paine.
Hotel Charles Darwin, Puerto Natales, 25 de Janeiro de 2010
MCS

O caminho fez-se (também) caminhando

Com um passeio sobre o glaciar Grey, no final da manhã de hoje, terminaram as caminhadas a pé que eu, a Lena e a Margarida, activamente procurámos desde a chegada aos parques naturais das latitudes austrais.
Primeiro, para “desenferrujar”, um trilho costeiro no Parque Nacional da Terra do Fogo, perto de Ushuaia. Cerca de 4 horas de um percurso pontuado de vistas espectaculares sobre o Canal Beagle, vegetação abundante (para deleite das duas amantes da flora), muita passarada, sucessivas enseadas com erva até à água transparente e um terço final em subida acentuada, a deixar-nos os bofes de fora.

Depois, no Parque Nacional dos Glaciares, uma subida nas faldas do Monte FitzRoy (El Chaltén, “a montanha que fumega”, na língua tehuelche), 14 km de extensão e 300 metros de desnível (a vencer duas vezes, na ida e no regresso), até um lago e um ponto de vista privilegiado sobre o pico uns 3000 metros mais acima. Tempo chuvoso mas vistas fabulosas para cima (picos nevados) e para baixo (encostas cobertas de vegetação e vale de aluvião com rio sinuoso.

No Parque Nacional Torres del Paine, um trajecto de barco pelo Lago Pehoe deixou-nos no Refúgio Paine Grande, início de um trilho que conduz ao denominado “acampamento italiano” (base da escalada da Torre Norte por uma expedição italiana, nos anos 60). Percurso de 15 km, feito em 5 horas e meia debaixo de chuva ocasional, bordejando vários lagos, observando pequenos glaciares e várias cascatas na encosta de rocha nua a pique acima de nós, atravessando uma torrente por uma ponte pênsil feita de madeira e cabos de aço (max. 2 pessoas de cada vez, dizia o aviso).


Ontem, o mau tempo apenas permitiu um pequeno mas instrutivo percurso de hora e meia através de uma amostra bastante completa dos vários ecossistemas pré-andinos.
Hoje, depois de uma travessia muito batida do Lago Grey (proa ao vento forte e à ondulação picada, a obrigar o semi-rígido que nos transportava a navegar devagar e a sujeitar-nos mesmo assim a uma verdadeira sova a cada embate com as ondas), uma experiência nova: caminhada sobre um glaciar. Grampos nas botas, arnês, piolet, aprender a caminhar com os “sapatos ferrados”, a subir e descer vertentes, e lá fomos, num grupo de sete e dois guias, à descoberta de um mundo novo: paisagem em múltiplos tons de azul, superfície do gelo polvilhada de calhaus de todas as dimensões, desde o areão ao pedregulho de muitas toneladas no fundo de uma depressão, lagoas de água absolutamente cristalina (lembram-se da garrafa de Absolut), cursos de água azur que serpenteiam apressados à superfície para tombar em cascata por poços (“moinhos”) profundos de várias dezenas de metros e se perderem nas entranhas do gelo, fendas de menos de meio metro de largura, longas de dezenas ou centena de metros e sem fundo aparente, vistas dominantes sobre o lago azul turquesa leitoso (“leite de glaciar”), pontuado de icebergues que os ventos dos últimos dias desprenderam. Chuva, vento, mas também o esplendor do gelo ao sol. Regresso de barco seguido de breve caminhada (meia hora) até ao almoço ligeiro num hotel confortável. A recordação do sol na cara e os músculos maçados a convidarem à moleza.


O motor insubstituível destas coisas é a curiosidade de descobrir sítios especiais e o gosto de estar na natureza. Mas a tecnologia dá hoje uma grande ajuda. Roupas e botas respiráveis, que impedem que a chuva entre mas deixam sair a transpiração, mantendo o corpo sempre seco, aplicação do princípio da “casca de cebola”, sucessivas camadas de roupas finas e leves que permitem adequar facilmente o nível de agasalho ao ambiente exterior, mantendo o corpo a uma temperatura confortável, mochilas ergonómicas, “camel-back”, todo um arsenal de meios que contribuem muito para o conforto e o prazer de quem as faz, mesmo que seja debaixo de vento frio e chuva, como várias vezes aconteceu.
Hotel Charles Darwin, Puerto Natales, Chile, 2010-01-25
VC

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Perito Moreno – Na névoa e ao sol

Mal seria não partilhar as emoções do encontro com o "Morenito".
Foi debaixo de uma chuva miudinha que primeiro avistámos o tão célebre Perito Moreno, nesse dia com o azul baço e acinzentado. A primeira impressão foi menos emocionante do que o esperado porque, ao longe, apenas se vê sobre a água o que parece uma pequena parede de gelo de recorte serrilhado. De mais perto, depois de descer os quase 300 degraus que levam à plataforma inferior, a visão é mais impressionante. A dimensão da parede de gelo impõe-se. Mas foi na aproximação de barco que melhor se sentiu o vento de frio agreste que soprava do glaciar. Vê-se, então, de perto, um enorme arco por onde, em ciclos de 4 anos, o glaciar explode, restabelecendo a ligação entre os dois braços do lago, lançando no ar um gigantesco spray de calhaus de gelo.
Ao sol, a visão é outra. Numa curva da estrada o “Morenito” aparece em todo o seu esplendor, enquadrado pela cordilheira de picos nevados. Massa de gelo a perder de vista, de bicos brancos e azul turquesa, com recortes cada vez mais ricos à medida que nos aproximamos. De novo o sobe e desce entre plataformas, a visão dos estratos de diferentes tonalidades e a emoção que acompanha o ouvir do estalar do gelo, prenúncio dos desprendimento dos enormes blocos que se despedaçam na água com barulho de trovão, deixando no ar, por uns momentos, uma poeira branquíssima.
Foram horas de contemplação onde não foi esquecida a entrega “daquele abraço” dos amigos distantes.
Frente ao glaciar Grey, PN Torres del Paine, 23 de Janeiro de 2010
MCS


Encontro pessoal com o vento patagónico

Por cá o tempo muda de hora para hora. Já tinha lido sobre alpinistas surpreendidos na montanha, mas é preciso viver a súbita entrada do mau tempo para perceber bem como é. No painel de informações do parque anunciavam ventos de 100 km/h para hoje. De madrugada a ventania instalou-se e a cabana confortável onde habitamos começou a estremecer e a ranger sob os golpes das refregas. Mas confesso que não ligámos muito. Afinal estamos na Patagónia e vento forte faz parte do quotidiano. Marcámos para hoje uma travessia de um lago seguida de um passeio a pé sobre um glaciar. No caminho para o ponto de partida, o Pedro, ao volante da pick-up TT que nos serve de transporte, queixou-se da força que tinha de fazer no volante para manter o carro no estradão. No aconchego da cabina do carro continuámos a não ligar. Subitamente, no meio de uma planura, a lona que cobre o compartimento de carga soltou-se. Parámos para a reprender. A Margarida saiu por sotavento mas eu só a muito custo, aproveitanto as pausas entre refregas, consegui abrir a porta de barlavento e sair. Mas, efectivamente, não tinha ainda percebido bem o que estava (par)a acontecer. Mal tinha dado 3 passos, os óculos voaram-me da cara e afastaram-se rapidamente, rebolando uns 30 metros, primeiro sobre o macadame e depois sobre a erva. Surpreso, vieram ao de cima os instintos e as boas regras da navegação no mar. Fixei visualmente o sítio onde os óculos tinham desaparecido e dirigi-me para lá. Nova surpresa. Depois de vários abanões, tive que me deitar no chão para não ser projectado e rebolado como folha seca. A meu lado, a Margarida também se tinha deitado no chão. A cara permanentemente fustigada por pequenas pedras lançadas pelo vento, as areias mais finas entrando-me nos olhos, lá fui gatinhando a quatro, à procura dos óculos, que finalmente achei e metodicamente guardei no bolso para encetar o processo de retorno ao carro. Agora de cara ao vento, foi uma luta que estive várias vezes à beira de momentaneamente perder. Sentado de novo no interior do carro, levei algum tempo a recompor-me do sucedido. Rolámos devagar até ao próximo abrigo, a meia dúzia de quilómetros, onde os óculos foram repostos em estado funcional e o ânimo fortalecido com um café quente. Experiência interessante e didáctica.
Hotel Grey, Torres del Paine, Patagónia chilena, 24 de Janeiro de 2010
VC

domingo, 24 de janeiro de 2010

Ventos patagónicos

Os ventos correm livres pela Patagónia, numa planície alisada e estendida. No céu baixo, as nuvens espalmadas passam céleres.
Os arbustos colam-se ao chão, enrolam-se em novelo, polvilhando o plano de montículos esféricos. As poucas gramíneas altas, os coirón, também em tufos, inclinam-se esbeltas e deixam correr o vento.
Os lagos, varridos por ondulação curta, ficam riscados de pequenas linhas de espuma branca. Nas margens ouve-se o rebolar dos seixos.
As árvores desabrigadas deixam-se ir e os troncos fazem esculturas de formas bizarras. Muitas vezes o espraiado das raízes na fina camada de solo não é suficientemente forte e elas tombam levantando um disco de terra.
O vento faz parte da paisagem. Custamos a habituar-nos, os olhos picam. Os passos levantam pó, os carros deixam um rastro longo de poeira.
Cabañas del Paine, 22 de Janeiro de 2010
HP

sábado, 23 de janeiro de 2010

As lengas morrem de pé

A Terra do Fogo tem árvores! Principalmente florestas de lengas, uma das poucas espécies autóctones, nothofagus pumilio de seu nome, nos guias chamada de faias austrais. Das faias têm a arquitectura em andares e folhas algo semelhantes. Com o vento torcem-se e dobram-se; as árvores isoladas ficam como estandartes ao vento, as arboles bandera. Por todo o lado, a paisagem é marcada por árvores mortes, troncos e ramos cinzentos, espetados contra o céu. Para além dos canais e glaciares, da impressão de uma Antárctida lá para baixo, a minha imagem da Terra do Fogo são estas árvores recortadas na paisagem.
São árvores que morrem naturalmente e ficam envolvidas por tufos de regeneração. Mas há outro caso, e muito exemplar. Os primeiros colonos na Terra do Fogo trouxeram uns tantos casais de castores. Eles gostaram, ninguém os comia, proliferaram, e toca a construir diques. Nos terrenos alagados ficaram os paus espetados das lengas afogadas.
Cabanas del Paine, 22 de Janeiro de 2010
HP

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Comidas e bebidas

Um ponto alto de qualquer viagem é a gastronomia. Que aqui também está a ser, tanto mais que um de nós não salta refeições nem admite sanduíches e picnics. Para quem está de dieta é duro e as prevaricações têm tido alguma frequência. Ele é bife de chorizo e de lomo e cordero patagónico. Mais para a costa, centolla e rabas fritas (chocos). Marcou-me especialmente um molho vermelho, agridoce, de bagas de calafate (um arbusto espinhudo) temperando um cordeiro delicioso que foi acompanhado por uma cerveja artesanal, de sabor ligeiramente frutado.
Todos os restaurantes e cafés são simpáticos: em Puerto Madryn, em Ushuaia e agora, aqui, em El Calafate. E até se ganham hábitos: em Ushuaia o café é no El Griego, em El Calafate no Casablanca.
Ah, e os vinhos! Esta parte é trabalho. Trata-se de uma amostragem de rolhas. Resultado preliminar: sempre de óptima qualidade, sem dúvida de origem portuguesa, embora uma vez tivéssemos uma de plástico. Em termos de castas, as nossas preferências têm ido para a Malbec embora a combinação de hoje, Malbec-Merlot tenha sido também apreciada, como se vê pelo registo à porta do “La vaca atada”.
Será que as caminhadas vão equilibrar os desvarios gastronómicos?
El Calafate, Hotel Tehuel, 21-01-2010
HP

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Uma cabana na floresta

Ushuaia encheu as medidas logo à chegada. Uma aterragem espectacular, descida em espiral sobre um fiorde (de facto, o Canal Beagle) até uma pista construída numa península no meio da água. Ao fundo, no lusco-fusco, uma cidade com atmosfera de fronteira da civilização. Construções de madeira dispostas em malha reticulada pela encosta acima, arquitectura de casa de bonecas, cores fortes e chapa ondulada nos revestimentos, barcos científicos atracados no molhe comercial, a lembrar que a Antárctida é já ali um pouco mais a Sul. Depois de várias vicissitudes e já passadas as onze (hora do pôr-do-sol, nesta altura do ano por estas paragens), encontrámos o alojamento que tínhamos reservado. Empreendimento familiar no limite da cidade, a meio da encosta culminada pelo branco dos cumes nevados, cinco cabanas literalmente colocadas entre os troncos da floresta de “lengas”. Moderna arquitectura de pedra e madeira, espaços interiores organizados em vários níveis, abertos entre si e sobre o exterior, decoração e conforto muito cuidados. Uma clientela angariada pelo boca-a-boca, aparentemente com pleno sucesso, segundo a proprietária. Acordámos de manhã a olhar da cama as árvores que nos rodeavam. Sossego e sentimento de bem estar. Depois de um pequeno-almoço caseiro, partimos à descoberta do resto do (fim do) mundo.
Patagónia Villa Lodge, Ushuaia, 2010-01-16
VC



segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ushuaia

Chegada ao final da tarde. Passa das 10 da noite mas o céu é azul-cobalto com laivos rosa e a atmosfera absolutamente transparente. O Canal de Beagle reflecte o colorido do céu que se mistura com os verdes, vermelhos e azuis das casas, transformando a água numa aguarela esborratada. Tem encanto imediato esta cidade florida, que um letreiro anuncia ser “Cullo del Mundo”.

Ontem, navegação no canal, com passagem junto a “Les Éclaireurs” um pequeno farol que, certamente, nos tempos heróicos dos pioneiros destas paragens ajudou a orientação dos viajantes. A bicharada, sempre presente, vista a poucos metros – cormorans em animado namoro e lobos-marinhos preguiçando – enchendo o campo de visão da objectiva e tão perto que à vista se juntava o cheiro!
Ushuaia, Patagónia Villas, 2010-01-17
MCS

Valdés: A Bicharada

A península de Valdés é a planura e a costa recortada, fronteira entre o baço da estepe e o azul brilhante do mar. Mas o seu encanto vem muito da presença da bicharada. Do meio do nada aparece, atravessando calmamente o estradão de “ripio”, um grupo de guanácos com ar curioso, uma nandú com movimentos pedantes e olhar curioso ou um bando de martinetas, espécie de perdiz bem nutrida e peninha de garça no alto da cabeça. Na costa, os pinguins, aos milhares, estão, descontraidamente, mesmo ao alcance da mão. Vistos mais de longe, os leões-marinhos espreguiçam-se rodeados dos seus haréns e filhotes.




O comportamento da bicharada lembra-nos que ali são os seus domínios e nós, viajantes, presença tolerada.
De evitar a proximidade do “zorriño”, que não faz cerimónia em nos presentear com os seus eflúvios…

Ushuaia, Patagónia Villas, 2010-01-17
MCS

sábado, 16 de janeiro de 2010

O regresso do espírito de viagem

Ao 4º dia, o espírito de viagem regressou. Depois de 3 dias de passeio em Buenos Aires – podia ser uma cidade europeia do Sul -, depois de uma aterragem sacudida por 40 nós de vento real, encontrámo-nos na planura da estepe patagónica. E o espírito das grandes viagens, o sentimento das travessias, do Sahara ou do Atlântico, regressou. Aquele sentimento em que nos reencontramos com a natureza ou o entorno, eles no centro do palco e nós meros personagens, de insignificante dimensão. A Península Valdés, bastante frequentada por veraneantes, só pontualmente soube consolidar esse sentimento. Isso aconteceu quando decidimos parar o carro e ir mirar, da beira da falésia, uma praia insuspeita cheia de lobos marinhos. Vamos ver agora o que nos reserva Ushuaia e o Grande Sul.


Lizard Café, Puerto Madryn, 2010-01-15
VC

Planura

A perder de vista o plano. Plano plano e plano ondulado. Ervas secas, tufos ou arbustos baixos. Não há linhas de fuga, a imagem espalma-se. Só há linhas horizontais, ocasionalmente quebradas por postes de electricidade. A fotógrafa pergunta-se: horizonte na parte inferior mostrando a imensidão circular do céu, horizonte subido com a monotonia da planície a encher os olhos, ou a meio, num equilíbrio indeciso?


Aeroporto de Trelew, 2010-01-15
HP

Trelew

Sobrevoa-se a planície, castanha, ponteada de tufos de vegetação, linhas de terra batida cruzando-a esparsamente. A linha de costa à esquerda, o castanho a terminar abrupto, debruado por uma tira esbranquiçada mostrando a falésia. O mar com carneiros de espuma vindos do sul, os “40 rugidores” já a chegar.
O avião treme, abana, depois salta. Mas aterra suave e pára junto ao terminal. Sai-se directo para a pista, o vento a fustigar. E aí ficam os viajantes a fotografar este princípio de lonjura.


Hotel Aguas Mansas, Puerto Madryn, 2010-01-12
HP

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

El Caminito

La Boca é um bairro na foz do rio Riachuelo, local de chegada de emigrantes pobres. Aqui se estabeleceu um grupo de marinheiros genoveses que no final do séc. XIX declararam a República Independente de La Boca, de vida curta dado que a Argentina não gostou…
Na primeira metade do século XX, por iniciativa do pintor Quinquela Martin, desenvolveu-se um projecto cultural com teatro de rua. As casas, de madeira e zinco, foram pintadas com cores fortes e garridas, e a rua baptizada de “El Caminito” em homenagem ao célebre tango. É agora um dos postais ilustrados mais comuns de Buenos Aires.
El Caminito é visita obrigatória, local de exposição de artistas e artesãos, cheia de movimento e colorido, com música ao vivo e espectáculos de tango.




quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Puerto Madero

Puerto Madero fica no antigo porto comercial de Buenos Aires, assim chamado porque o seu promotor foi Eduardo Madero. As antigas docas são hoje usadas por embarcações de recreio e os armazéns portuários, em tijolo, foram recuperados para apartamentos. Nas arcadas, ao longo de toda a beira de água, sucedem-se os restaurantes fazendo deste local um centro gastronómico agradável e animado. Aí comemos vários bifes de chorizo e de lomo, e provámos as delícias dos vinhos tintos argentinos.
Nos terraplenos do lado marítimo os novos edifícios criam um skyline recortado e moderno.
Puerto Madero constitui também uma homenagem à mulher com a sua Ponte de la Mujer, obra de Santiago Calatrava, e com toda a toponímia dedicada a mulheres com papel relevante na Argentina.




Café Tortoni

O segundo dia em Buenos Aires começou com um café num dos pontos de visita obrigatória, o histórico café Tortoni. Fundado em 1858, foi ponto de encontro da sociedade burguesa e da intelectualidade de Buenos Aires. Também aí cantou Gardel.
As paredes estão cobertas com pinturas e fotografias antigas contando a história do café. Ao fundo, numa mesa, José Luís Borges, Carlos Gardel e a poetisa Alfonsina Storni deixam-se fotografar pelos turistas.


Palo borracho

Nos jardins de Buenos Aires é frequente uma árvore com tronco bojudo em forma de pote e aspecto inconfundível, que se presta a arte urbana. Na floração parece um enorme vaso coroado com centenas de flores rosa e branco. As sementes estão envoltas em fios sedosos, brilhantes, que se espalham com o vento. Os espinhos, fervidos em água, parecem curar tanto as dores de costas como o alcoolismo…
Trata-se da Ceiba speciosa, chamada pelos guaranis samohú, e que nós conhecemos como a árvore da sumaúma.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Buenos Aires

Buenos Aires recebeu-nos com tempo tropical, 300 e quase 90% de humidade, o que não impediu a primeira caminhada pela cidade.
A Av. Florida, pedonal, começava a animar-se pelas 10 da manhã embora, pelo menos a essa hora, muitas lojas estejam fechadas, algumas por todo o dia de Domingo.
Florida desemboca na célebre Praça de Maio, do mundo conhecida pelas manifestações das “Mães da Praça de Maio” que perderam os seus filhos no tempo da ditadura. No chão, o seu símbolo – o lenço branco, frente à “Casa Rosada” a sede da Presidência, com protecções delimitando até onde as manifestantes se podem aproximar, pois todas as semanas as “Mães “ aí marcam a sua presença.



Pelo Paseo de Colon se rumou ao Bairro de San Telmo de ruas estreitas e onde todos os turistas em Buenos Aires se concentram ao Domingo para flanar entre os “hippies” que, imutáveis no tempo, vendem as missangas, penas e outros materiais transformados em adornos. Tudo no chão onde também se espalhavam os “copos” para o mate, os vidros, sei lá que mais. Um mágico tirava da mão vazia o eterno lenço vermelho que, de seguida, fazia desaparecer. Jovens, produzidas, posavam em atitude de tango.



Na esquina o bar “Mi Tio” onde nos refrescámos da verdadeira canícula que está lá fora. Ao lado, uma banda tocava vagamente jazz. O ambiente é animado e fez-nos sentir bem, nesta primeira aproximação a Buenos Aires

Na Patagónia

Bruce Chatwin apareceu por acaso, no deambular frente aos escaparates da livraria. O título Na Patagónia despertou o interesse, a leitura da badana completou a decisão. Jornalista do Sunday Times Magazine, ficou célebre o seu telegrama de demissão “Fui para a Patagónia”. E sobre o livro: um clássico da literatura contemporânea que conferiu novos contornos à literatura de viagens.
O livro deixa marca. Conta histórias de pessoas, numa mistura de origens e actividades, galeses, ingleses, russos, judeus, fazendeiros, padres, engenheiros. Histórias banais que tecem um quadro de impressões.
E tem também relatos históricos, das viagens de Magalhães, Fitzroy e Darwin, e de muitos outros. Aqui a narrativa é mais detalhada, e muitas vezes são quase epopeias de vidas de aventura. Como a de Charley Milward, em rapaz posto na marinha mercante, em 1870, que correu mares, elegeu o fim do mundo como porto de retorno, e olhou o estreito por um telescópio instalado na torre da sua casa em Punta Arenas.
Ou as histórias dos fora-da-lei americanos, que por aqui também andaram, por exemplo Robert Leroy Parker, ou melhor Butch Cassidy.
Não há grandes registos do mundo físico, apenas pequenas frases secas, que criam o cenário impressionista. “Ao longo da linha de maré amontoavam-se pedaços de madeira embranquecidos pelo mar e, por vezes, viam-se costados de navios e vértebras de baleias”.
No fim esquecem-se todos os nomes, fica apenas uma amálgama de vidas que passaram por um espaço de fim de mundo.
Bruce Chatwin morreu novo, de uma doença contraída nas suas viagens (1949-1989).

Helena

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Referências

Diz-se que grande parte do encanto das viagens é a preparação.
Esta já deu quase um ano de emoções, em noitadas nas procuras dos locais, nos planos de voo e calendários.
Como em viagens anteriores, iremos à procura de referências de livros que nos marcaram. O incontornável Chatwin e a sua “Patagónia” que revela que Butch Cassidy & Kid”, depois dos tiroteios na América no Norte, se gastaram pelas planuras e montanhas do Sul.
Reler o “Courier du Sud” e reconhecer que foram os vulcões da Terra do Fogo que inspiraram os pequenos vulcões que o Petit Prince cuidou de deixar limpos antes de partir do seu planeta.



Ainda com Sait-Exupéry por referência, ter presente que, como lembra Korda, só se vê bem com o coração, o essencial é invisível para os olhos.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Patagónia

A 10 de Janeiro esperamos aterrar em Buenos Aires, para iniciar o périplo pela Patagónia e Tierra del Fuego.

A uma semana da partida, criação deste espaço que deverá ser o lugar para o registo das impressões de viagem, ilustradas com algumas imagens.