quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O Tejo em Ródão

A passagem do Tejo em Ródão era, num passado não muito distante, um marco no percurso de Lisboa às Beiras. Percorriam-se, então, ambientes e morfologias agora esquecidas pelo trajecto na auto-estrada onde as descidas e subidas dos vales,que se desenrolavam em dezenas de curva / contra curva por km, se galgam nos grandes viadutos. Cruzavam-se paisagens e locais a que se associavam acontecimentos e histórias que se vão esfumando do imaginário colectivo. Em tarde de outono luminosa a tentação de espreitar as Portas do Ródão e percorrer a estrada que, de junto à ponte sobre o Tejo, trepa encosta acima acompanhando o percurso do rio. No alto, o caminho para o Castelo Roqueiro, plantado no maciço rochoso.


 Da plataforma sobre as Portas ou do janelão da Torre de Menagem, o olhar mostra, para montante, o grande rio, manso como um lago que o estrangulamento do desfiladeiro lhe impõe. Para jusante o rio corre em meandros à volta de ínsuas arenosas. As margens perdem, progressivamente, o seu carácter escarpado alargando-se em encostas arredondadas salpicadas pelos maciços rochosos que emergem da vegetação de estevas e folhosas ainda amarelas neste final de Outono.

   
E vem à memória a descrição de Hipólito Raposo “São como ombreiras mutiladas dum arco de triunfo que um capricho plutónico quisesse ter ali deixado à honra do grande rio, nas primeiras auroras do mundo...”

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Turquia, dia 3: Formas bizarras e o mercado colorido

A Capadócia é inesgotável em rochas de formas bizarras e era obrigatório ver de perto as “três irmãs” que têm honras de capa de livro e presença garantida nos postais ilustrados. Há outros pedregulhos de formas que, com menos ou mais imaginação, se assemelham a entidades tão díspares como um camelo ou a virgem Maria!  
Nas encostas dos vales ravinados, distinguem-se os estratos coloridos com as riscas rosadas dos sedimentos ferrosos logo seguidas das camadas dum amarelo esverdungado sulfuroso.
O colorido do dia esperava-nos, porém, no mercado da pequena cidade de Urgup, particularmente animado nas vésperas do “feriado do sacrifício”, que se celebra por estes dias. Lá estavam as ovelhas que serão sacrificadas, mas também os legumes e as frutas com a frescura e a arrumação que revela que o oriente é aqui ao lado. A banca das especiarias, da canela ao açafrão, e dos chás, de barbas de milho ou lúcia-lima, é um consolo de cor e aromas. 
No meio deste colorido dois rapazes servem o chá e fascinam-me os rostos de quem vende e compra. Fotografias tiradas à socapa ou de “modelos” que pousaram de boa vontade, mostram alguns rostos da Capadócia.

Nevsevir, Capadócia, 13 de Novembro de 2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A vingança das espoliadas (um conto moral)

As planícies da Panfília, em redor de Antalya, com o mar em frente e as montanhas de Taurus a separar do planalto da Anatólia, são muito férteis com solo rico, clima ameno e água abundante. São possíveis três culturas anuais e tudo aqui cresce, desde os legumes variados, aos citrinos e outros frutos, à vinha e até ao algodão. Ser agricultor é, portanto, uma actividade rica.
Quando o patriarca da família morre e se faz a divisão das terras pelos herdeiros – muitos, nestas famílias de 6, 8 ou mais filhos – muito naturalmente os varões encabeçam a fila e a eles são distribuídas as melhores terras agrícolas, situadas bem no aconchego da planície. Às filhas cabe a orla do mar, na falésia, rochas e pedras sem valor.
Chegam os anos da procura do sol, e o desenvolvimento do turismo alemão, nórdico, oriental e … português!, faz disparar a construção de hotéis e casas de férias, desejavelmente bem localizados com vista, ou pelo menos proximidade, do azul turquesa mediterrânico. Como (quase) sempre, resultou uma amálgama de edificações e uma urbanização espalhada a desfear a paisagem, sobressaindo o estilo arquitectónico consumista, mesmo tratando-se dos inúmeros 5 estrelas.
As filhas espoliadas são hoje ricas…
Advertência moral: novas ricas mães, não deixem que o futuro das vossas filhas fique ao sabor de um imponderável acaso!

Antalaya, 16. Nov.2010


sábado, 13 de novembro de 2010

Turquia, dia 2: Balões e chaminés de fadas

Era noite cerrada quando partimos a caminho da aventura de balão. Somos recebidos com um chá quente, reconfortante. Perto, três enormes balões, enormes vistos assim de perto e no chão, começam a inchar. Quando a madrugada clareia descobre-se que, a toda a volta, do meio das formações rochosas de formas extravagantes, aparecem cores garridas de dezenas de balões preparando-se para voar.


Em cada barquinha, uma enorme cesta de vime, embarcamos 25. Levanta-se voo suavemente, num silêncio só quebrado pelas exclamações dos viajantes e pelo “bufar” dos quatro queimadores que aquecem o ar que nos tira do chão.
Sobe-se a 1500 m de altitude, voa-se num vale entre as formações rochosas ravinadas, às vezes rasando as encostas, as copas das árvores e os “chapéus” das chaminés de fada.

Clareia mais e o piloto anuncia: “Sun rising”. Agora, com mais luz, vêem-se a toda a volta as dezenas de balões que todas as madrugadas, povoam os céus da Capadócia.

A experiência acaba com a aterragem, algures, num prado plano onde nos espera o jeep com um atrelado onde pousou a barquinha, operação final ajudada pelos viajantes aos pulinhos.

Depois, ao longo do dia, viram-se as chaminés de fada, as rochas com casas e capelas escavadas e os vales pintalgados dos damasqueiros de folha amarela de todos os ângulos e perspectivas, passeando à volta das colunas rochosas ou trepando as escadas e encostas empinadas. Mas nada é tão especial como a visão, lá do alto, à luz dum sol acabado de nascer.

Nevsevir, Capadócia, 12 de Novembro de 2010

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Pináculos, colunas e árvores amarelas

Há imagens, ou impressões de imagens, que sabemos que vão ficar. Para além da viagem e da sua história integrada, do álbum organizado de memórias e saberes, acontecem farrapos gráficos, certamente associados a algumas emoções pretéritas, que se erguem do tecido da recordação.
Como as colunas de pedra, quais pilares de catedral, espetadas nos vales à volta de Goreme, singulares ou agrupadas. Um ar de outro mundo, ou algo mágico. São as chaminés das fadas, que viviam sob o solo. Há torres e cones encabeçados por chapéus, em equilíbrio improvável, as formações em cogumelos como assim lhes chamam.
A história é também interessante, um exemplo da mudança e de ciência dos materiais, que se pode contar como história de embalar. Há muitos muitos anos, as erupções de dois vulcões cobriram a terra desta região com uma camada fofa de cinzas e lava, um tufo vulcânico, que formou uma planície extensa. Em algumas zonas, ou em determinados períodos, a lava chegou espessa das profundidades dos vulcões e formou camadas de basalto resistente e denso. Os vulcões extinguiram-se. Mas vieram ventos e águas, diferenças térmicas de dia e noite, de verão e inverno, e sismos que fracturaram, escavaram ravinas, fizeram vales e canyons. O tufo frágil erodiu-se rapidamente, deixando montes ou cones arredondados ou pontiagudos. Mas quando eram encimados por basalto, este não só resistiu mais, como promoveu a compactação das camadas por baixo e lhes aumentou a resistência à erosão. Ficam assim colunas de tufo topeadas de lajes de basalto, claramente mais escuras do que o castanho claro ou esbranquiçado do tufo.
Não pude deixar de pensar nas torres e telhados feitos por Gaudi nas suas casas de fadas. E a Sagrada Família, com as suas torres cónicas esburacadas também parece inspirada nos montes escavados com conventos e igrejas. Mas essa é já outra história…
O amarelo das árvores, neste fim de Outono com sol de S. Martinho, associa-se indelevelmente à imagem das colunas de pedra e dos vales. O esguio de grupos de choupos ajuda a marcar as verticais, o arredondado das copas de outras folhosas mais baixas faz o contraponto. O brilho dos amarelos, por vezes com algum castanho ou vermelho, dá um toque de alegria.

Goreme, 12.Nov. 2010



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Turquia, dia 1: de Antalya a Nevsevir, Capadócia

Saiu-se do hotel pela manhã. Ao longe a cordilheira do Taurus que limita a Norte a planície costeira de Antalya. Terra boa, sol mediterrânico e água dão três colheitas por ano. Muitas estufas e os campos de algodão onde mulheres trabalham, de lenço cobrindo-lhes a cabeça ou porque o sol é inclemente, ou por ditame da sua crença religiosa.

Ao lado da estrada, ainda na planície, a cidade de Manvagat. Ao longe, a Mesquita, e junto à estrada as construções modernas, de gosto aceitável e bom aspecto, todas equipadas com painéis solares e seus depósitos que criam uma “decoração” peculiar em todas as coberturas.


A subida da montanha começa entre barreiras de sedimentos enrugados e florestas de pinheiros salpicados de folhosas que dão À paisagem o colorido alaranjado do Outono. Os vales, organizados em terraços, tanto podiam ser aqui como nos contrafortes dos Himalaias. Mais alto as formações cársicas dominam, com rochas fracturadas e erodidas e a floresta é de cedros, ainda presentes no ponto mais alto do percurso, a 1825 m. Mais ao longe, os cumes, arredondados pela erosão e totalmente despidos de vegetação.
Formações com origem em vulcões há milénios extintos fazem a separação com a Capadócia.
Para além do Taurus, a planície de Konia, a perder de vista. Entrámos na Rota da Seda com visita ao Caravanserai Zazadin Hani. Local de abrigo e descanso dos mercadores de outros tempos, agora preservados para visita ou transformados em restaurantes ou mercados.
 
É noite e as primeiras impressões serão ao nascer do sol, de balão.
Nevsevir, Capadócia, 11 de Novembro de 2010

Group-in-Group travel

Nos meus pensamentos sobre viagens, cunhei este conceito, a viagem do grupo-no-grupo, o group-in group travel. Trata-se de uma primeira experiência cujos resultados e justeza das elucubrações se verão ao longo desta semana.
Peguemos num avião, fora das companhias conhecidas, talvez com estrelas no rabo. Bem empacotados cabem uns duzentos, que continuarão reunidos ao longo de transbordos, hotéis, autocarros, visitas e quejandos. Que diferenças com outras viagens? A simultaneidade dos acontecimentos e os ajuntamentos correspondentes, um pano de fundo de exclamações e interpelações uns quantos decibéis acima, uma homogeneidade da população.
Não parece para nós! Pois não, mas muito muda quando integramos um grupo menor neste grande grupo. As palavras são nossas, a procura de imagens e emoções é partilhada, a envolvente apenas dá uma formatação aos dias. Como em meio exótico, não se deve lutar contra ele ou as suas diferenças, apenas deverá haver adaptação. Ou seja, trata-se de estabelecer a fronteira do sistema.

Antalya, 10.Nov.2010

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Douro em tons de fogo

Em dia que começou chuvoso partimos a caminho do Douro. Passagem pelas cidades fortificadas que se defendiam do invasor castelhano com muros e azeite a ferver. Primeiro Trancoso, depois, com vento agreste, Penedono e o seu castelinho saído directamente dos romances de cavalaria.

Para norte, a paisagem vai mudando, o cinzento do granito é substituído pelo vermelho do xisto ferroso e das vinhas incendiadas de cores de Outono.


Debaixo de um céu onde nuvens escuras coam o sol, passa-se São João da Pesqueira e sobe-se o ermo de São Salvador do Mundo, com a via sacra de nove capelinhas encarrapitadas monte acima.

Lá em baixo, o Douro, encaixado nas falésias, ali domesticado pela barragem da Valeira no local onde existiu o Cachão, local de naufrágio célebre onde o Forrester se afogou e a Ferreirinha foi salva, dizem, pelo balão das suas saias.

A toda a volta, as vinhas arrumadas em linhas de traçado improvável, com as folhas de cores do laranja ao rubro, antes de caírem à terra para reentrar no ciclo vital que, na primavera, as pintará de verde luxuriante.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

E se da janela do castelo uma trança de princesa

Nenhum de nós conhecia Penedono. E foi, portanto, uma surpresa encontrar o castelo, bem no cimo do monte, implantado a coroar rochas ciclópicas. Como num conto de Rapunzel ou outras princesas, com torres elevadas, matacães a sobressair, janelas lá no alto, a deixar imaginar reclusões forçadas e cavaleiros salvadores. O caminho a subir leva à porta de entrada da muralha baixa, depois um pequeno percurso e entra-se no castelo sob um arco quebrado. Agora vazio, heptágono irregular, teria tido um piso intermédio, algumas escadas ainda lá estão, de outras só as marcas. Sobe-se aos torreões, caminha-se em redor das ameias pelo caminho da ronda. O vento está forte, o estandarte do senhor bate. Na realidade é uma bandeira portuguesa de bordes esfiapados.

O castelo é monumento nacional, exemplo da arquitectura militar gótica. Começou árabe e tem referência antiga do ano de 960, que chama a estas terras Pena do Dono.

Guarda, 31 de Outubro de 2010

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Áleas de espinhos

Nunca tinha encontrado fiadas de ceibas a ladear ruas ou caminhos. Foi aqui em Palermo que as vi, primeiro na Universidade, a ladear a rua principal. Depois no Orto Botanico, em fiadas ao longo de vários caminhos e na Villa Giulia, o jardim mesmo ao lado, a fazer um xadrez num dos cantos.
Têm uma imagem forte. Em primeiro lugar fica na memória o seu tronco barrigudo, como um sempre-em-pé estranho, mesmo se algumas são mais ou menos cilíndricas. Depois os espinhos, fortes e pontiagudos, mais numas do que noutras, e uma casca muitas vezes estriada de verde fotosintético. As flores vistosas, rosas ou brancas, a cair em tapetes garridos. Os frutos são grandes e abrem numa bola de fios sedosos.
Ceiba speciosa, o palo borracho que encontrámos em Buenos Aires, também chamada barriguda, paineira ou kapok, a silk floss tree já teve o nome científico de Chorisia speciosa (é ainda assim que está nas tabuletas no Orto). Também é conhecida como enchimento de almofadas, embora seja outra espécie, a Ceiba pentandra, a verdadeiramente considerada sumaúma.
Palermo, 24.Out.2010




sábado, 23 de outubro de 2010

Igrejas igrejas igrejas!

São muitas as chiesas de Palermo! Nas ruas, de um lado e outro, por vezes a pouca distância, ao virar da esquina, nos becos e nas praças. Às vezes soltas, como a Chiesa di San Giorgio dei Genovesi, em terreno aberto junto ao Porto, singela.
Misturam-se também as arquitecturas, fruto da diversidade da ocupação histórica da cidade. O mapa turístico da cidade divide mesmo os percursos por período: árabe-normando, gótico-renascimento, séc. XVII e barroco, séc XVIII, séc. XIX e arte nova.
Na memória ficam só algumas. Pela surpresa de a encontrar junto ao porto, graciosa e sóbria, ligeiramente dourada no sol que abria, a renascentista Chiesa di Santa Maria della Catena, um convite a parar nas arcadas da entrada. Ou o pequeno cubo simples com cúpula vermelha, da Chiesa di San Cataldo, a evocar os cavaleiros do Santo Sepulcro. E a catedral, claro, misturando épocas e estilos, com a grande praça a dar espaço e os adolescentes do liceu Vitor Emmanuel ao lado a namorar nos bancos.
Palermo, 23.Out.2010





As ruas traseiras de Palermo

Sem guia para dar prioridade à visita, apenas com um mapa, comecei a volta. E quis o acaso das deambulações que conhecesse as ruas traseiras de Palermo antes do circuito monumental.
Estreitas, muito estreitas, as varandas quase tocando-se, as fachadas esquálidas, um ar de pobreza, mistura e confusão. Nas ruas maiores, uma mistura de gentes, bem visível a proximidade do norte de África e da África mais abaixo. Mas principalmente os sicilianos, ruas de homens, velhos e novos, homens nos cafés e nas esquinas, jogos de cartas, discussões acaloradas nas vielas que parecem ir levar a um tiroteio. Por todo o lado, carros e muitas motoretas, vespas e congéneres.
As varandas correm nas fachadas, roupa em algumas e, em muitas, vasos com plantas e flores. Adivinham-se casas, visões de filme.
Encontrei também mercados de rua, que deixam no fim da tarde um rasto de restos de legumes e caixas vazias. Em algumas das ruas, o estendal das bancas é ao estilo dos souks árabes, vende-se de tudo, desde roupa e sapatos a cortinados ondeando ao vento.
A pouca distância do Palazzo Real, encontrei as cavalariças para os cavalos que fazem os passeios na cidade. A princípio pareceram-me um pequeno bairro da lata, mas aí estava um a ser escovado e, vendo bem, os cubículos até estavam limpos e pareciam funcionais.
Por aqui há casas senhoriais abandonadas, embora ainda graciosas, e igrejas decrépitas mas mostrando o seu passado de renascimento ou barroco.
E passa-me pela cabeça que as cidades continuam a ter dificuldade em fazer viver os seus centros históricos, mantendo a pujança que outrora tiveram, com a diversidade de gentes que as tornaram grandes e mexidas.
Em Palermo, sente-se bem a riqueza dos cruzamentos passados.
Palermo, 23.Out.2010




quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Glimpse travels

Há vários tipos de viagens. Falo hoje dos glimpse travels, assim me surgiram, em inglês, as “viagens espreitadelas”, olhares roubados num instante, quiçá inesperado, certamente não programado. Quando ocorrem? No interior de viagens de trabalho, nos acasos de voltas profissionais, uma tarde, um dia livres, voltas soltas sem preparação ou o conhecimento que integra o planeamento de viagens dedicadas. Sem sistematização ou lógica, são fruto do acaso e do tempo, ou também das oportunidades que os próprios eventos oferecem.
Lembro dourados e espelhos dum banquete na esplendorosa sala espanhola do castelo de Praga, um templo grego contra o céu ao pôr do sol em Paestum, a calma suave no fim da tarde no chateau d’Yquem no regresso da recolha das uvas, a emoção dos muralistas mexicanos em Chihuaha e depois na cidade do México, o sortilégio dum comboio a apitar na noite nas faldas do Himalaia.
Ficam assim farrapos, pinceladas, por vezes fortes, que perduram na memória. Não são extrapoláveis para o país ou a cidade (mas quando o são?), representam apenas a surpresa, a emoção e o olhar aberto de um instante, às vezes em cenários que evocam leituras, filmes ou notícias.
Como em Palermo, agora.
Ficou já a chegada no aeroporto de Punta Raisi, um cabo esticado no mar tirreno a cerca de 30 km da cidade. O avião aterra em pista que corre ao longo do mar, as ondas mesmo ali a quebrar em linha paralela, o mar a perder de vista como se se estivesse num fim de terra…
Palermo, 21.Out.2010
Helena

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Volta à Chapada: Pôr-do-sol no Pai Inácio

O Morro do Pai Inácio é um grande cilindro irregular de quartzito cinzento, mais ou menos plano no topo, que se eleva a 233 m sobre um sopé em faldas verdes. Está isolado na paisagem, de modo que permite olhar a toda a volta, nomeando morros e vales. Ali estão os Morros do Testemunho, a envolver o Vale do Cercado, que acompanharam a evolução geológica da região, de mar a rio, até ao presente. Do outro lado, os morros dos Três Irmãos, em sucessão, o da Nascente do Rio Mucugêzinho, o do Rio Sossego, terminando com o maior da Chapada, o Morrão. Cá em baixo passa a BR, marco do mundo de hoje, com o seu desfile ininterrupto de caminhões.
No topo do morro está uma grande cruz metálica e aí se conta a história. Inácio era um “negão” bonito e ardiloso, filho de pai de santo, conhecedor de algumas magias, em amores correspondidos com a filha menina do coronel Horácio de Matos. Perseguido pelos jagunços, esconde-se no morro, mas uma fogueira denuncia-o. Prefere não ser preso e, da borda, soltando um grito, salta. Mas havia um recesso escondido por baixo. Como demonstrou um dos guias, saltando também para o vazio. A lenda diz que Inácio pegou a menina, fugiram, e ainda hoje são avistados em Salvador.
Termina-se o passeio a olhar o pôr-do-sol. Logo que o sol se esconde, desce-se rápido pois escurece depressa. Fechou-se a volta à Chapada.



quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O que o ecoturismo pode fazer por uma região deprimida

Há 20 anos, a Chapada Diamantina estava numa daquelas situações de fim de ciclo que as regiões de monocultura (aqui eram os diamantes) conhecem periodicamente e de que, a cada vez, parece muito difícil sair. Na esteira da Conferência do Rio (1992), houve a percepção de que a Natureza encerrava um potencial susceptível de criar novas oportunidades, até aí inexploradas. Pelo que percebemos, algumas ONGA que reuniam juventude local terão contribuído, à sua maneira, para empurrar as coisas no sentido certo. O que viemos encontrar em 2010 é uma região em estado de puro optimismo (na linha do estado geral que, felizmente, assola o Brasil por estes tempos), uma região em que as pessoas transparecem felicidade, simpatia e confiança.
Tudo centrado no turismo de Natureza, que traz, durante o ano todo, um fluxo regular de visitantes e alimenta um sem número de empresas e profissionais: guias, carregadores, condutores de veículos todo-o-terreno, pousadas para todas as bolsas, “nativos” (como são chamados os locais que habitam pelos montes fora e acolhem nas suas casas os caminhantes em jornadas mais longas nos vales e planaltos), restaurantes (alguns bem sofisticados na comida regional que servem), bares e lojas de artigos de alimentação, lojas de souvenirs, pequenos museus locais e ateliers de artistas. Para se ter uma ideia, a Venturas e Aventuras, empresa sedeada em Lençois que nos organizou e guiou na estadia na Chapada, tem cerca de 15 guias locais (além de carregadores e condutores). A empresa Bicho do Mato, que nos guiou na visita ao Buracão (que a Lena descreve noutro post), sedeada numa pequena localidade, emprega cerca de uma dúzia de guias locais. Tudo muito profissional, partidas e chegadas a horas, organização sem falhas, simpatia e colaboração sempre presentes.
Há 20 anos atrás estava em marcha um novo êxodo daqueles que assolam periodicamente o interior do Brasil desde há dois séculos. Hoje existe uma população jovem, activa e confiante. Percebe-se que a consciência da Natureza como recurso colectivo é elevada. Pequenos sinais: a recolha de lixo separativo em todo o lado, mesmo nas papeleiras da via pública; as ETAR em construção; os painéis informativos e os folhetos de divulgação e sensibilização por todo o lado; a imaculada limpeza das trilhas e das ruas. E grandes sinais: o discurso e a atitude das pessoas; a noção de que se trata de um desenvolvimento suportado na valorização dos recursos endógenos. Contraste com a pilhagem dos tempos do garimpo e do desmonte mecânico das margens dos rios e riachos, com as consequências ambientais conhecidas e ainda bem visíveis no vale assoreado do Paraguassu.
Itacaré, 2 Setembro
Vitor



terça-feira, 31 de agosto de 2010

Volta à Chapada: Catinga com Poço Azul e estudantes

O sertão, seco, de catinga, das histórias dos bandeirante ou das personagens de Jorge Amado vislumbrou-se num relance de passagem entre casas simples perdidas num terreiro castanho e campos nus semeados de pequenos montes de terra arredondados que são formigueiros (diz-se que algumas chegam a 9 cm!).
O destino era o Poço Azul, uma gruta funda onde o lençol freático faz uma lagoa. Aqui foram achados ossos de um passado distante, de preguiças e tatus gigantes. Uma abertura na rocha deixa passar os raios de sol durante algumas horas e a água fica azul, estranhamente transparente, deixando ver nítido o fundo distante.
Pode-se nadar, mas a visita é estritamente controlada - número de pessoas, tempo limite, duche prévio, nenhuns objectos, colete e óculos – o que torna a actividade demasiado amestrada.
Acrescia como envolvente uma excursão de uma escola secundária de Feira de Santana, com bandos de adolescentes à espera de vez para o Poço, comendo, rindo e tirando fotos.
Aí fomos entrevistados, por um grupo que tinha que fazer um trabalho para inglês. Â falta de nativos, também funcionaram uns portugas a falar inglês. E as perguntas e respostas sobre a importância da língua inglesa no mundo de hoje lá se fez, devidamente gravada e filmada e, no fim, com anotação dos nossos nomes.
Houve foto de fecho de entrevistadores e entrevistados. A miúda, nas escadas do Poço, deu-me um abraço bem saboroso. Devia ter-lhe perguntado o nome.



Volta à Chapada: Buracão

O Parque Municipal do Espalhado é da jurisdição de Ibicoara que obriga a que o guia acompanhante seja da cidade. O primeiro passo foi apanhar o Marconi, da agência Bicho do Mato. A trilha é curta, um total de ida e volta de 6 km, principalmente na margem do rio Mucugêzinho que depois se junta ao Riachão das Pedras, em terreno arenoso ou empedra.
Os cactos xique-xique abundam e em algumas passagens é preciso algum cuidado. Também há muitas canelas de ema, bromélias e muitas outras plantas de que não sei o nome. As orquídeas já não estavam em flor, mas vimo-las no paredão da Cachoeira das Orquídeas e pode-se imaginar…
O rio espalha-se em algumas zonas, depois entra e sai da terra, fazendo cachoeiras e lagoas. A última, o nosso destino, era espectacular: o Buracão. Desce-se até uma garganta muito estreita (10 m?) de arenitos estratificados que fazem um listado de relevos horizontais. Vê-se correr a água, funda, preta, mas polvilhada â superfície por farrapos brancos de espuma que se adivinham vindos da cachoeira. E nada-se, uns 80 m (colete é obrigatório), entrando no desfiladeiro, subindo a corrente, virando â esquerda para descobrir a lagoa e o rio a cair na vertical.



Cidades do garimpo

Foram os diamantes que trouxeram gente a estes povoados – Igatu, Mucugê, Andaraí, para além de Lençóis.
Igatu é um bom exemplo. Chega-se por 6 km de um caminho em grande parte calcetado com lajes de pedra que sacolejam tudo. Mas está tombada… nada a fazer! Ali corre o rio Piaba que desce o monte até ao rio Paraguaçu, lá no vale, ambos locais de garimpo. Igatu era conhecido pelos diamantes carbonados, negros, valiosos de tão duros para ferramentas de corte.
O garimpo fazia-se primeiro manualmente, imprimindo movimentos circulares à bateia, grande prato de madeira ligeiramente cónico, onde os diamantes, mais densos, se depositavam na depressão central. A estátua numa das praças de Andaraí é bem elucidativa. Depois veio o garimpo motorizado e o Paraguaçu, antes profundo e navegável, ficou completamente assoreado.
Aqui viveram no auge perto de 10 mil pessoas. Muitos escravos mas também a arraia miúda, a mando dos senhores dos garimpos e das terras, e do coronel. Parece que, quando assassinaram o coronel Horácio de Matos, a população debandou, montes afora, e ficou a cidade-fantasma, como hoje se chama. Tombada, claro!
Igatu vive hoje do ecoturismo e de uma certa vertente artístico-cultural. Marcos Zacarias é um artista residente, curador de um pequeno museu e sala de exposições. Os grandes discos feitos com uma amálgama de cápsulas de eucalipto, de sua criação, vão ficar-me na memória.