quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O caminho fez-se (também) caminhando

Com um passeio sobre o glaciar Grey, no final da manhã de hoje, terminaram as caminhadas a pé que eu, a Lena e a Margarida, activamente procurámos desde a chegada aos parques naturais das latitudes austrais.
Primeiro, para “desenferrujar”, um trilho costeiro no Parque Nacional da Terra do Fogo, perto de Ushuaia. Cerca de 4 horas de um percurso pontuado de vistas espectaculares sobre o Canal Beagle, vegetação abundante (para deleite das duas amantes da flora), muita passarada, sucessivas enseadas com erva até à água transparente e um terço final em subida acentuada, a deixar-nos os bofes de fora.

Depois, no Parque Nacional dos Glaciares, uma subida nas faldas do Monte FitzRoy (El Chaltén, “a montanha que fumega”, na língua tehuelche), 14 km de extensão e 300 metros de desnível (a vencer duas vezes, na ida e no regresso), até um lago e um ponto de vista privilegiado sobre o pico uns 3000 metros mais acima. Tempo chuvoso mas vistas fabulosas para cima (picos nevados) e para baixo (encostas cobertas de vegetação e vale de aluvião com rio sinuoso.

No Parque Nacional Torres del Paine, um trajecto de barco pelo Lago Pehoe deixou-nos no Refúgio Paine Grande, início de um trilho que conduz ao denominado “acampamento italiano” (base da escalada da Torre Norte por uma expedição italiana, nos anos 60). Percurso de 15 km, feito em 5 horas e meia debaixo de chuva ocasional, bordejando vários lagos, observando pequenos glaciares e várias cascatas na encosta de rocha nua a pique acima de nós, atravessando uma torrente por uma ponte pênsil feita de madeira e cabos de aço (max. 2 pessoas de cada vez, dizia o aviso).


Ontem, o mau tempo apenas permitiu um pequeno mas instrutivo percurso de hora e meia através de uma amostra bastante completa dos vários ecossistemas pré-andinos.
Hoje, depois de uma travessia muito batida do Lago Grey (proa ao vento forte e à ondulação picada, a obrigar o semi-rígido que nos transportava a navegar devagar e a sujeitar-nos mesmo assim a uma verdadeira sova a cada embate com as ondas), uma experiência nova: caminhada sobre um glaciar. Grampos nas botas, arnês, piolet, aprender a caminhar com os “sapatos ferrados”, a subir e descer vertentes, e lá fomos, num grupo de sete e dois guias, à descoberta de um mundo novo: paisagem em múltiplos tons de azul, superfície do gelo polvilhada de calhaus de todas as dimensões, desde o areão ao pedregulho de muitas toneladas no fundo de uma depressão, lagoas de água absolutamente cristalina (lembram-se da garrafa de Absolut), cursos de água azur que serpenteiam apressados à superfície para tombar em cascata por poços (“moinhos”) profundos de várias dezenas de metros e se perderem nas entranhas do gelo, fendas de menos de meio metro de largura, longas de dezenas ou centena de metros e sem fundo aparente, vistas dominantes sobre o lago azul turquesa leitoso (“leite de glaciar”), pontuado de icebergues que os ventos dos últimos dias desprenderam. Chuva, vento, mas também o esplendor do gelo ao sol. Regresso de barco seguido de breve caminhada (meia hora) até ao almoço ligeiro num hotel confortável. A recordação do sol na cara e os músculos maçados a convidarem à moleza.


O motor insubstituível destas coisas é a curiosidade de descobrir sítios especiais e o gosto de estar na natureza. Mas a tecnologia dá hoje uma grande ajuda. Roupas e botas respiráveis, que impedem que a chuva entre mas deixam sair a transpiração, mantendo o corpo sempre seco, aplicação do princípio da “casca de cebola”, sucessivas camadas de roupas finas e leves que permitem adequar facilmente o nível de agasalho ao ambiente exterior, mantendo o corpo a uma temperatura confortável, mochilas ergonómicas, “camel-back”, todo um arsenal de meios que contribuem muito para o conforto e o prazer de quem as faz, mesmo que seja debaixo de vento frio e chuva, como várias vezes aconteceu.
Hotel Charles Darwin, Puerto Natales, Chile, 2010-01-25
VC

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